Desenhava casas. Arquitecto, assim o chamavam os homens das obras; Sr Arquitecto, com uma reverência que o incomodava, como se Cristo tivesse afinal morrido e subido aos céus para tirar o curso e descido à Terra, segunda vez, finalmente, de canudo na mão. Inclinavam a cabeça como fiéis discípulos e apontavam os olhares e os dedos para desenhos, buracos de fundações, vigas, pilares erguidos e os sítios daqueles por erguer. Enchiam a boca de perguntas olhando para as próprias botas e esvaziavam-na num círculo que desenhavam com a cabeça de volta do Sr Arquitecto, botas, monte de tijolos, céu, sacas de cimento, botas novamente e o Sr Arquitecto no centro do inviolável círculo.
Olhe para mim, homem.
Apetecia-lhe gritar. Agarrá-los pelos ombros, sacudir-lhes o corpo e mostrar-lhes as palmas das mãos e dos pés; dar-lhes a ver que não foram pregados à cruz, que crucificações eram coisas do Messias e abrir a camisa e revelar-lhes o peito sem buraco de lança.
Mas os olhos dos homens sempre encontravam as botas onde descansar, monte de tijolos, subir ao céu, nova saca de cimento e encerrar o círculo novamente nas botas.
Olhe para mim, homem!
Acabara por desistir. Percorria as obras resignado, entregando-se à subserviência e distância destinadas aos profetas e procurava conforto na luz que aprendera a amar nas revistas de arquitectura e nas casas acabadas, incólumes em fotografias anunciadas por milhões nas imobiliárias.
Arquitectura é nada mais do que luz, recordava do velho professor da faculdade.
E procurava-a. Mas ela não se mostrava. Estugava o paço e travava-o nas esquinas, furtivo, esticava o pescoço e espreitava o lado de lá na esperança de a encontrar desprevenida, natural, mas era sempre uma coisa mortiça, uma presença desconsolada. Nunca se mostrava. Nunca se mostrara. A luz de Lisboa no interior de uma obra, concluíra, era tão subserviente quanto uma obra cheia de homens; rasteira, entrava diagonal, pedindo licença, envergonhada e desistente e deitava-se no cimento. Nunca subia. Nunca se elevava acima das botas dos homens; lambia-lhes as solas e não aquecia nada, nada iluminava. Era oca, fútil, vazia de propósito mas, por vezes, muito de vez em quando, poderia ele jurar que a ouvia gritar baixinho no mais ensurdecedor dos sussurros, como se uma voz de descontentamento o compreendesse, a ele, arquitecto, por não encontrar onde se encostar. Logo se calava, imaginação talvez, pensava para si e confrontava desiludido a promessa de luz que se deixava estar enquanto ele a pisava, imóvel; um animal ferido, escondido e assustado. Como se esperasse apenas morrer. Ou talvez apenas a oportunidade de viver.
Conhecera e conhecia assim as obras, cheias de ecos, de homens nervosos e luzes inertes. Cuidava delas, promessas de casa, e elas cresciam. Como um filho. E, como um pai, sabia que, um dia, mesmo que ficando ali, presas às suas fundações, partiriam.
Compreendera que desenhar casas era imaginá-las cheias mas vê-las sempre vazias e, acima de tudo, que nas casas vividas a luz sustém-se no ar; paira como outro filho. Nas casas vazias abate-se sobre o chão. Não fica, não permanece; vai, dissipa-se, desaparece, escurece e então entendeu não ser ela, a luz, afinal subserviente; apenas incompleta, um pedaço de algo que aguarda. Aguarda apenas que entre gente, encha a casa e lhe dê onde se encostar.
Compreendera que ser arquitecto é dar tecto às pessoas mas que, quando elas entravam, já ele saíra. A primeira noite delas na casa nova era a primeira noite dele em que mais não pensava nela; apenas e já na seguinte, no primeiro risco traçado numa folha de papel numa secretária num escritório vazio, esperando por ele, Sr. Arquitecto. Não as via vividas nem quando a luz chegava e se hospedava. Nunca as vira vividas e compreendera pois que vivia as casas que desenhava quando apenas a luz nelas se deitava e não as pessoas. Uma luz morta que se erguia quando erguiam as pessoas o interior da casa.
Quando viu aquela, de paredes verde pálido e cantarias brancas, comprou-a. Entalava- se numa rua estreita de Lisboa; silenciosa, de calçada velha, baça e desnivelada, beatas velhas no chão e velhas beatas à janela, estranhamente parecidas.
O agente imobiliário vomitava dados irrelevantes enquanto ele procurava a luz no céu, apertado entre telhados. Viu-a escapar-se por uma nesga entre chaminés e antenas antiquadas e mergulhar num ângulo impossível pelas janelas de sacada. Correu para o interior e viu-a comovido espalhando-se pela madeira do chão, quase líquida; quase via a madeira amolecer e contorcer-se de prazer.
Comprou-a.
(Comprei-a).
Os caixilhos são de madeira, rangem abrindo e agradecem quando as fecham e os vidros tilintam, finos mas não frágeis, soltos nas armaduras.
As ombreiras das portas já há muito que não são nem paralelas nem perpendiculares a nada. Ajeitaram-se à posição que mais conforto lhes dá e ali ficaram, tortas, descansadas, verdadeiras.
Nunca tinha realmente visto verdade nas casas que desenhara e agora aquela, ali, de paredes verde pálido e cantarias brancas, era a mais verdadeira de todas.
Coisas que o tempo dá, pensou.
Sentou-se numa cadeira e recebeu a luz no regaço. Era sua. Não para si mas sua.
Não a desenhou. Comprou-a.
Abriu uma residência de estudantes.
O primeiro hóspede bateu à porta e ele, com o cuidado de um pai que não quer acordar o filho, fez uma concha com as mãos e segurou-a, a luz, levantou-se e poisou-a na cadeira. Ficou, amolecida, amolecendo.
O primeiro hóspede, pensou, olhando o feixe de luz e a cadeira iluminada e adormecida pelo calor.
Abriu a porta. Começou.
Conheceu a luz, depois os hóspedes e então conheceu a casa. Como se ela se apresentasse ali, naquele momento, iluminada e cheia, útil, cheia de propósito. Verdadeira. Nunca mais desenhara. Era então arquitecto. E empreendedor. Mas, acima de tudo, arquitecto.